domingo, 29 de julho de 2012

Memória viva da Educação

Para explicar o passado, o presente e o futuro da escola no Brasil a partir da década de 1930, quatro mulheres que escolheram o magistério como carreira contam seus desafios, realizações e sonhos.

A história da educação é contada por documentos, datas e relatos. Ao conhecer a memória e os planos de três professoras e de uma estudante de pedagogia, você vai compreender um pouco da trajetória do ensino brasileiro a partir da década de 1930. As opções, os desafios e as realizações de cada uma têm ligação direta com as lutas de poder, as leis, a participação do Estado na Educação e a valorização profissional do magistério.

No tempo da professora Iracema Noemia Farina, de São Paulo, era forte a participação da Igreja no ensino, e estudar era um privilégio de poucos. Se a paulistana Juliana Piauí, 19 anos, filha de uma diarista e de um porteiro, fosse contemporânea da professora, provavelmente não estaria cursando uma faculdade. Experiências diferentes e igualmente interessantes são contadas por Consuelo Carvalho, 60 anos, diretora de escola em Brasília, e Sonia Beatriz Leal Silva Rossi, 42 anos, professora em Salvador.
Além das fontes oficiais e de depoimentos, as imagens também são uma rica fonte para reconstruir a história de nossa escola. No início do século passado, as professoras eram retratadas ao lado dos estudantes de maneira séria, distante e formal. Já no final da década de 1980, elas apareciam descontraídas e sorridentes.

Nossa primeira escola foi fundada pelos jesuítas em 1542, na Bahia. O objetivo era propagar a fé e salvar a alma daqueles que não temiam a Deus, como os índios. Menos de 200 anos separam a partida dos jesuítas expulsos do Brasil pelo marquês de Pombal em 1759 do ingresso de Iracema no curso de magistério. Se nesses dois séculos pouca coisa mudou, a partir dos anos 1960 a revolução tecnológica transformou a escola e o papel do professor.
A Escola Nova luta pelo ensino público 

"Quando iniciei o curso de magistério era raro ver uma moça se formar em direito ou seguir outra carreira que não a de professora. Mas não foi por isso que optei pela sala de aula. Fiz uma escolha consciente e jamais me arrependi dela. Ser professora era um ideal. Acho que me inspirei nos mestres maravilhosos que tive durante a minha formação. Até hoje guardo muitos deles na lembrança, como Maria José Duarte, uma mulher inesquecível que lecionava sociologia. Depois que ela faleceu, eu ocupei sua cadeira no curso de pedagogia. Surpreendo-me, muitas vezes, repetindo seus gestos e trejeitos em sala de aula. Esse é um exemplo da importância do professor na vida de seus alunos. Nosso trabalho deixa marcas para sempre!

No magistério, descobri minha vocação religiosa e comecei a dar aulas para crianças e jovens. Impressionada com a forma como Dom Bosco [1815-1888], um padre e professor italiano, lecionava, resolvi fazer pedagogia. Não parei mais de estudar: fiz sociologia e teologia e fui trabalhar em faculdades no interior do estado.

Sempre fui dinâmica em sala de aula. No começo, eu só utilizava o gogó e os livros para ensinar. Depois, descobri o slide e hoje não consigo lecionar sem passar um filme.

Sou professora há 66 anos. Dou aulas de sociologia, antropologia e história da arte e sou vice-diretora das Faculdades Integradas Coração de Jesus, em Santo André. O que eu quero do futuro? Transformar o mundo, ora bolas! Acredito no que façoe não foi à toa que cheguei até aqui."
Esta reportagem é uma homenagem de NOVA ESCOLA aos professores brasileiros e um exercício de reflexão. Que escola está sendo construída para as próximas gerações?

A vida da professora Iracema Noemia Farina se confunde com os caminhos da educação nas últimas seis décadas. Ela tinha apenas 12 anos quando um grupo de educadores publicou um manifesto a favor do ensino público, obrigatório e laico. A necessidade de uma escola pluralista veio à tona com o crescimento das indústrias e a explosão demográfica na zona urbana. A rede de colégios religiosos em que Iracema iria estudar mais tarde atendia apenas à classe média alta.

Em 1937, quando se formavam os primeiros professores do ensino secundário, Iracema estava ingressando no curso de magistério. Era o início da ditadura de Getúlio Vargas período conhecido como Estado Novo e que durou até 1945. Foi nessa época que ela se tornou freira e conheceu de perto a desigualdade social.

Nos anos 1960, Iracema teve notícias sobre as campanhas de alfabetização no campo e se encantou com as idéias de Paulo Freire. Na mesma época, defendeu tese sobre a exploração do trabalho no regime capitalista. Assim como o educador pernambucano, que foi exilado, a professora foi punida pelos militares por discutir em sala de aula a conscientização popular, mas não abriu mão de suas convicções. Nessa fase, o currículo refletia a ditadura Educação Moral e Cívica era disciplina obrigatória. "Hoje em dia, é muito bom poder falar sem medo dos problemas sociais e dos direitos humanos."
Tempos de Estado Novo e expansão da escola secundária

1930 Criação do Ministério da Educação e Saúde.

1932 Publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, liderado por Fernando de Azevedo (1894-1974) e assinado por 26 educadores, entre eles, Anísio Teixeira (1900-1971). O documento defende o ensino integral, público, laico e obrigatório.

1934 A nova Constituição Federal institui pela primeira vez a educação como um direito de todos. Os saberes escolares se voltam para conhecimentos científicos e comportamentais, baseados em valores morais. Os currículos privilegiam os temas relacionados à higiene e aos cuidados com a saúde.

1937 O golpe do presidente Getúlio Vargas (1883-1954) interrompe as mudanças educacionais que vinham sendo discutidas desde 1932. Há um impulso na formação do magistério, com a reorganização de algumas escolas secundárias.

1938 Criação da União Nacional dos Estudantes (UNE) e do Instituto Nacional de Estudos de Pedagogia (Inep).

De 1942 a 1946 O curso secundário passa a ser constituído do ginásio, de quatro anos, e do colegial, de três, dividido em curso clássico e científico. É estabelecido o ensino profissionalizante mantido pelo Estado e pelas indústrias. A legislação recomenda que as mulheres freqüentem escolas exclusivamente femininas.
As imagens contam que...
As mulheres começam a ocupar cargos no magistério. Pela primeira vez, as moças que moram nos grandes centros urbanos saem de casa para trabalhar em escolas fora de suas cidades. Essas professoras têm uma postura formal e distante das crianças. As fotos, todas oficiais, remetem à disciplina dos alunos.
Anos 1960
Durante a ditadura, a rede cresce, mas sem qualidade
"Sou de uma época em que a carreira do magistério começava a perder o prestígio, e a mulher já tinha conquistado outros campos de trabalho. Minha mãe sonhava ter uma filha médica ou advogada e tive de enfrentá-la para ser professora. Não me via fazendo outra coisa. Desde pequena eu queria lecionar, e as bonecas foram minhas primeiras alunas. Em 1960, dei o primeiro passo para o magistério, com a ajuda do meu pai. Ele me matriculou em uma escola normal, em Belo Horizonte. O colégio pertencia a uma congregação religiosa e eu era bolsista. Tinha 18 anos quando comecei a lecionar em uma escola de periferia. Apesar de ser bem nova, a diretora me contratou porque na época a falta de professores era um dos principais problemas do ensino.

Novata, não tive escolha. Fiquei com a turma mais indisciplinada e que apresentava as maiores dificuldades de aprendizagem. As classes eram divididas assim: a de alunos considerados nota 10, a dos regulares e a conhecida como a sala do 'só Deus para ajudar'. Eu tinha muitas limitações e não havia trabalho em equipe. A primeira orientação que recebi foi: 'Seja bastante enérgica e se mostre brava'. No final de 1970, me mudei para Brasília, onde estudei pedagogia e comecei a trabalhar em escolas particulares. Hoje sou bem diferente daquela menina de 18 anos: dirijo a Escola Cresça, da rede particular, tenho mais experiência e a mesma convicção de que só seria feliz no magistério! Meu desafio agora é mostrar aos jovens que vale a pena ser íntegro e ético na atual fase histórica do nosso país, marcada pela descrença e corrupção."



1950 Lançamento da cartilha Caminho Suave, de Branca Alves de Lima.

1959 Divulgação do Manifesto dos Educadores, assinado por mais de 190 pessoas, entre elas, o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995). O documento critica o discurso conservador da Igreja Católica sobre o ensino e a lei que defendia o apoio à escola privada.

1961 Promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educacão Nacional (LDB), que determina o fim dos exames de admissão para o colegial, tornando a escola aberta, mas não obrigatória para os concluintes do 4º ano primário.

1962 Surge o método Paulo Freire. Para o educador pernambucano (1921-1997), a valorização da cultura do aluno é o caminho para a conscientização política e a aprendizagem.

1967 A nova Constituição estabelece pela primeira vez a obrigatoriedade do ensino até os 14 anos. Para combater o analfabetismo é criado o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral).

1968 A revolta estudantil acontece em vários países. No Brasil, alunos reivindicam mais vagas nas universidades públicas e o fim da ditadura militar.

1969 Lei institui as disciplinas de Educação Moral e Cívica no primário, Organização Social Política Brasileira (OSPB) no Ensino Médio e Estudos de Problemas Brasileiros (EPB) no Superior.

As imagens contam que...
O regime militar (1964-1985) impõe o civismo na educação. Momentos solenes, como o hasteamento da bandeira e apresentações de ginástica, demonstram a ordem estabelecida, em contraste com o movimento das ruas.
Anos 1980
Escola mais aberta pede ênfase na formação
Lembro-me muito bem do meu primeiro dia de professora, em 1988. Como a escola era próxima à minha casa, fui caminhando cheia de planos e sonhos... Assim que entrei na sala de aula começou a loucura. Tinha aluno batendo no colega, alguns jogavam capoeira e outros andavam sobre as carteiras. Fui ficando apavorada. O que eu faria com a metodologia, a didática e a psicologia aprendidas na faculdade? A primeira coisa que compreendi foi que não basta ter boa vontade. É preciso também ter competência técnica. E fui em busca dela: ingressei na rede municipal e participei de todos os cursos oferecidos pela secretaria de Educação. Em pouco tempo, senti que estava ensinando melhor e que os alunos aprendiam mais. No final da década de 1990, fui selecionada para trabalhar na Escola Municipal Barbosa Romeo, que atende crianças e adolescentes carentes, onde leciono até hoje. Aí, sim, encontrei meu lugar. Passei a fazer parte de grupos de estudos e a debater sobre minha prática. Ainda tenho muitos caminhos a trilhar, como me tornar mestra em educação. Neste ano, concluí minha especialização em educação especial. Nossa escola agora aceita crianças com necessidades especiais, e elas também têm direito a um ensino de qualidade. Acabei de fazer um curso de libras. Ainda não aprendi tudo que preciso para me comunicar com uma aluna surda que recebemos, mas participar dessa formação me desequilibrou bastante.

O caminho é longo, mas não desisto. Vou buscar novos conhecimentos, novos parceiros, novas formas de ensinar..."



Quando Sonia Beatriz Leal Silva Rossi pensou em se tornar professora, a velha aula com giz e muita explicação teórica já não fazia mais sentido. O computador começava a chegar à escola, e a educação ambiental, a violência urbana e a inclusão de portadores de necessidades especiais eram os temas do dia.

Dois grandes fatos marcaram o período: a formação e a organização sindical dos professores, que, a partir de 1978, reivindicavam aumento salarial, e a derrubada da ditadura militar. "Na faculdade, discutíamos o que deveria ter mais peso: a competência técnica ou o compromisso político com a educação", conta.

No estado de São Paulo, foram implantados os Centros Específicos de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério (Cefams) e, em outros estados, a oferta de formação em serviço passou a ser uma prática.

Em 1980, foram retomadas as idéias da educação popular, apontando que era preciso considerar os saberes das populações pobres e a experiência de vida dos alunos para que o conhecimento estruturado na escola fizesse sentido. "Com a chegada dos primeiros computadores e com o impacto dessas novas discussões, o papel do professor realmente foi colocado em xeque", afirma o professor Carlos Jamil Cury.

Sonia Beatriz se formou em pedagogia quando o Brasil já não vivia sob o regime militar, e o país começava a incluir na escola crianças e jovens que estavam à margem do Ensino Fundamental desde os primórdios da educação.
Tempos de Mobilização de professores
e novas teorias pedagógicas 

1971 Acontece a reforma do Ensino Fundamental e do Médio. É ampliada a obrigatoriedade do ensino de quatro para oito anos. Uma parte do currículo contempla uma educação geral e outra, conteúdos específicos para habilitação profissional. Algumas disciplinas se tornam obrigatórias, como Educação Artística e Programa de Saúde e Religião.

1978 Professores se mobilizam em diversos estados para recuperar as perdas salariais, regulamentar a carreira do magistério e reivindicar melhores condições de trabalho.

1979 Promulgação da anistia aos presos políticos exilados, como Leonel Brizola (1922-2004) e Paulo Freire.

1980 Morre o psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980). Suas idéias sobre a concepção construtivista da formação da inteligência passam a ser discutidas no Brasil.

1982 O ensino profissionalizante deixa de ser obrigatório no nível médio, sendo retomada a ênfase para a formação geral. A disciplina de Filosofia ressurge como optativa.

1985 O movimento estudantil assume importante papel na luta pela anistia de políticos brasileiros e pelas eleições diretas para presidente da República. O Mobral é extinto e em seu lugar é criado o Projeto Educar.

A disciplina não é mais tão rígida e os alunos mostram intimidade com os professores, agora mais próximos e amigos. O fácil acesso às máquinas fotográficas automáticas revelam o comportamento dos adolescentes na escola.
Anos 2000
A tecnologia chega à escola, que não é mais só para a elite
"A tecnologia é um bicho-de-sete-cabeças para muitos professores. Em contrapartida, vejo crianças de 5 anos na frente de um computador dando um baile nos adultos. Essa situação deixa bem claro o quanto as relações na escola têm que se basear na troca de experiências. A tecnologia pode, sim, aproximar as pessoas e nunca vai substituir o professor.

Será que vou ser uma boa educadora? Penso nos pontos positivos dos meus professores. 'Como você está hoje Juliana? Está feliz?', costumava perguntar minha professora da 1a série. Vou levar para o resto da vida esse olhar e esse cuidado.

Trabalho na biblioteca do Projeto Casulo, onde o livro faz a ponte entre mim e as crianças. Conheço o contexto de vida de cada uma porque vivemos na mesma comunidade. Falamos a mesma língua, e assim consigo chegar até elas. Tomara poder trabalhar com alunos de 1a a 4a série e ser uma boa referência na vida das pessoas que cruzarem o meu caminho. Quero ajudar a construir um ensino de qualidade no meu bairro e ver funcionando lá uma escola de Ensino Médio. A vida oferece muitas possibilidades interessantes se conhecemos nossos direitos e lutamos por eles!"

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