Que se perdoe o exagero da frase: o Fla-Flu começou no Recife. Sim, é
bem verdade que a disputa de futebol entre times de Flamengo e
Fluminense é cria do Rio de Janeiro, nas Laranjeiras, em um domingo de
julho de 1912. Mas o verdadeiro Fla-Flu, não. O clássico como é hoje,
com a grandeza contrastada pela miudeza de duas monossílabas separadas
por um hífen, veio à luz na capital pernambucana. E, feito uma partida,
teve dois tempos: o primeiro antes mesmo de o jogo existir, em 1908,
quando nasceu Mario Filho; e o segundo justamente em 1912, quando Nelson
Rodrigues saiu do ventre de sua mãe. As impressões digitais deixadas
pelos irmãos nas teclas de suas máquinas de escrever criaram o
imaginário do clássico que completa 100 anos neste sábado. O Fla-Flu
teria outra dimensão sem eles.
Nelson Rodrigues e Mario Filho: irmãos redefinem o clássico Fla-Flu.
Mario, rubro-negro tímido, e Nelson, tricolor apaixonado, formam a
dupla de ataque da imortalização do clássico. O primeiro o fomentou como
ninguém; o segundo foi quem melhor o descreveu. O empreendedorismo do
irmão mais velho, que cede nome ao Maracanã, encontrou respaldo nas
crônicas oníricas do caçula. Cada texto dele transformava o futebol,
especialmente o Fla-Flu, em um sonho.
Eles tiraram do novelo de mais um duelo regional o fio que se espicha
até hoje, quando se comemora o centenário do clássico. No Lamas,
bar-café-restaurante que é tradicional reduto de jornalistas, políticos e
intelectuais no Rio de Janeiro, o GLOBOESPORTE.COM reuniu dois
descendentes da família Rodrigues para uma conversa sobre a relação
entre os irmãos e o clássico. Nelson Rodrigues Filho e Mario Neto têm
histórias a contar.
Mario Filho: uma bicicleta para calar o neto
Nelson Rodrigues Filho e Mario Neto: lembranças.
Era dia de Flamengo x Botafogo em 1959. Entre os vivos, raros eram
aqueles que conheciam a preferência rubro-negra na alma de Mario Filho.
Ele decidiu levar seu neto para assistir ao jogo no Maracanã. Até aí,
nada de anormal. Como responsável pelo "Jornal dos Sports", cabia a ele
acompanhar o futebol de perto.
O estranho aconteceu quando saiu um gol do Flamengo. O pequeno Mario
Neto, sentado junto ao avô, olhou para a cadeira ao lado e, por um
segundo, não viu ninguém ali. O jornalista estava no ar, em um salto,
comemorando o gol. Quando se acomodou, diante da cara de espanto do
menino, Mario Filho alertou: "Meu neto, não pense besteira, não. É que
vamos vender mais jornais."
Balela. Na verdade, ele não queria que o garoto soubesse de seu carinho
pelo Flamengo. E seguiu desconfiado de que o neto fosse abrir o bico
mais cedo ou mais tarde. Daí concluiu: era melhor comprá-lo. No dia
seguinte, ao abrir os olhos, o menino levou um susto.
- Quando eu acordo, tem uma bicicleta no meu quarto e um papel
pequenininho colado, escrito: "Fiz minha parte." A bicicleta era a parte
dele. A minha parte seria não contar para ninguém. A partir dali,
entendi mais meu avô. A parte da família de minha avó era toda
rubro-negra. Quando ele ia para o outro lado da família, era Fluminense.
Para resolver o problema, ele dizia que era Fla-Flu. E era mesmo. Mas
no fundo, no fundo, ele se delatou - recorda Mario Neto.
Mario Filho não era um torcedor fervoroso do Flamengo. Ele foi além da
paixão. Percebeu que tinha em mãos um produto raro. Viu que a mistura de
cinco cores, em dois clubes irmãos e rivais, poderia dar caldo. E
passou a tratar o Fla-Flu como um jogo completamente diferente dos
demais. Teve o estalo de gênio para, em pouco tempo, transformar o
clássico: deixou de ser uma partida para virar um acontecimento.
Ele foi vanguardista. Acima de tudo, percebeu que havia duas
personagens que realmente interessavam no esporte: o jogador e o
torcedor. Os atletas, graças a ele, saíram de colunas escondidas e
migraram para as capas dos jornais. Ainda hoje, além de cronista
brilhante, ele é reconhecido como o papa da literatura esportiva no
Brasil pela escrita de "O negro no futebol brasileiro", livro
fundamental para a compreensão do esporte como fenômeno de massa no
país. Também escreveu "Histórias do Flamengo", o que automatizou a visão
das pessoas de sua identificação com o clube rubro-negro.
Com Mario Filho, o público passou a ser protagonista também. Ele
promoveu concursos entre as torcidas. Aquela que fosse mais criativa
ganharia prêmios. Do nada, nasceu uma briga de originalidade em troca
de... geladeiras!
- O Mario Filho via as coisas. Ele viu o que estava acontecendo, o que
significava o futebol indo para a rua. O futebol era de elite. Só jogava
quem tinha grana. Ele viu os jogadores da rua. E resgatou o termo
Fla-Flu. Ele é o único autêntico, verdadeiro e genuíno Fla-Flu da vida
real. Não existe outro - comenta o filho de Nelson Rodrigues.
Criada a festa, ela passou a ser o que realmente importava para Mario
Filho. Resultado do jogo? Vitória ou derrota do Flamengo? Era
secundário...
- A grande preocupação dele no Fla-Flu não era o jogo: era a
arquibancada. Ele promovia a festa. A cada Fla-Flu, a melhor torcida
ganhava um prêmio, uma geladeira, uma passagem para Recife. E a torcida
naquela época era diferente. Nas semanas dos Fla-Flus, os chefes de
torcida iam ao estádio pedir informações, saber como deveria ser o
comportamento. Era assim em todos jogos, mas não tanto quanto no
Fla-Flu. Ele ficava preocupado com a arquibancada. Não queria ver briga.
Ligava para a polícia para saber como tinha sido. Ele queria saber se
deu tudo certo, se a geladeira foi entregue. Se foi 5 a 0 para o
Flamengo ou 5 a 0 para o Fluminense, era o que menos importava para ele.
Era o resultado geral que interessava. Se ele visse uma briga na
torcida, aquilo acabava com ele - conta Mario Neto.
Mario Filho brigou pela criação de um estádio gigantesco, que pudesse
receber aquilo que seu irmão batizaria de "multidões imortais". Queria o
Maracanã. Carlos Lacerda, que depois viraria governador do Rio, também
queria, mas em Jacarepaguá. Os dois, cada qual em seu jornal, iniciaram
uma briga de popularidade. Mario venceu fácil, fácil. E o estádio depois
receberia seu nome.
Isso foi às vésperas da Copa de 50. O jornalista acompanhou de perto o
torneio, como se fosse parte dele. E acompanhou também a final, com mais
de 200 mil pessoas incrédulas diante de uma assombração celeste, frente
a frente com uma tragédia sem proporções. Depois da derrota para o
Uruguai, ele foi para casa e se trancou no quarto por cerca de 15
minutos. Em seguida, foi ao telefone para ver como estava a preparação
da edição histórica do jornal para o dia seguinte. Enquanto ele debatia
os andamentos editoriais do diário, sua esposa, Célia, foi ao quarto.
Lá, encontrou um lenço molhado. Eram as lágrimas de Mario Filho.
Mario Filho viu que o futebol deveria ser centrado nos jogadores e na
torcida. E Nelson Rodrigues percebeu que dali sairia a matéria-prima
para o núcleo de suas crônicas: as personagens. Cada jogo rendia uma
figura de destaque para os textos dele. Poderia ser um jogador, um
torcedor, um árbitro, até uma "cusparada metafísica", citando exemplo de
crônica de 1957 no "Manchete Esportiva" - em referência a um cuspe dado
por Dida, do Flamengo, na bola antes de uma cobrança de pênalti
malsucedida de Osmar, do Canto do Rio.
Nelson criou alguns dos termos mais famosos do jornalismo esportivo
brasileiro: a síndrome de vira-latas, o óbvio ululante, o Sobrenatural
de Almeida, o Gravatinha. Sem medo de adjetivos, nem precisava ver um
jogo para escrever sobre ele como se estivesse mais presente do que a
própria bola. Escrevia com paixão, com parcialidade, combatendo aqueles a
quem classificava de "idiotas da objetividade".
Adorava futebol; em especial, o Fluminense; mais em especial ainda, o
Fla-Flu, o clássico que, segundo ele, começou "40 minutos antes do
nada".
- O velho dizia que o clássico foi gerado no ressentimento, porque o
Flamengo nasceu de jogadores saídos do Fluminense. O Fla-Flu tem outra
rivalidade. Dentro da filosofia dele, se por acaso o Flamengo tivesse
vencido, não haveria essa rivalidade. Como o Fluminense venceu, a
rivalidade se incrementou. O velho dizia que já era tricolor em épocas
passadas, bem antes dessa encarnação - comenta Nelson Rodrigues Filho.
O jornalista foi soberano como cronista esportivo e como dramaturgo.
Enquanto versava sobre futebol, escreveu repetidas obras-primas: "Toda
nudez será castigada", "O beijo no asfalto", "Os sete gatinhos",
"Bonitinha, mas ordinária". Nos jornais, ganhou fama de profeta. Foi o
primeiro a chamar Pelé de rei. Foi o primeiro a pedir Amarildo como
titular na Copa de 62. Repetia suas ideias até que virassem uma
convicção popular.
- O lance do velho é que ele via o futebol de outra forma, voltado ao
indivíduo. Foi o primeiro a dizer que Pelé era rei. Ele dizia: "Não sou
ninguém sem minha repetição. Uma verdade dita uma única vez deixa de
existir." Em 62, ele insistiu que o Amarildo tinha que jogar. Fala-se
muito no Garrincha naquela Copa. Mas no dia em que o Brasil ganhou a
Copa, houve passeata na minha casa e no "Jornal dos Sports", com todo
mundo querendo falar com o velho por causa do Amarildo. Ele tinha essa
capacidade de ver as coisas, de sentir as coisas - observa o filho do
cronista.
A crônica mais dolorida. E a última crônica...
Nelsinho ajudou o pai a escrever sua última
crônica (Foto: Alexandre Alliatti / Globoesporte.com)
crônica (Foto: Alexandre Alliatti / Globoesporte.com)
Mario e Nelson eram muito próximos. O contato entre eles era diário. Se
não se vissem na redação durante o dia, o irmão mais velho telefonaria
para o mais novo à noite. Conversavam sobre jornalismo, sobre a família,
sobre futebol, sobre Flamengo e Fluminense. Conversavam sobre Fla-Flu.
- Tivemos 50 anos de intimidade e, portanto, meio século de convivência
exemplar e implacável - escreveu Nelson sobre seu irmão no livro
"Fla-Flu... E as multidões despertaram".
Em 1966, Nelson Rodrigues precisou escrever sua crônica mais dolorida.
Um ataque cardíaco tirou a vida de Mario Filho, com apenas 56 anos.
Terminou ali a relação tão marcante para eles - e para o jornalismo
brasileiro. E começou um processo de exposição da admiração do irmão
mais novo pelo mais velho, expresso nas crônicas de Nelson. Em uma
delas, ele diz que Mario foi "o único grande homem" que ele conheceu. E
afirma:
- O maior estádio do mundo tem o seu nome. Pena é que não o tenham
enterrado lá. Com o Maracanã por túmulo, Mario Filho mereceria que o
velassem multidões imortais.
Nelson Rodrigues passou 14 anos sem o irmão. Morreu em dezembro de
1980. Em "O profeta tricolor - Cem anos de Fluminense", o filho do
dramaturgo relata como foi a última crônica de seu pai. O "Velho", como
Nelsinho sempre se refere a ele, recebera orientações de se manter
afastado dos jogos, especialmente os do Fluminense, para não testar
ainda mais uma saúde já debilitada.
Em 30 de novembro daquele ano, o Tricolor fez 1 a 0 sobre o Vasco, com
gol de Edinho, e ganhou o Estadual. Nelsinho não foi ao Maracanã. Ficou
ao lado do pai, contando a ele, de pouco em pouco, como ia a partida.
Encerrado o jogo, Nelson Rodrigues foi até a máquina de escrever. Seu
filho, diante de uma cena ao mesmo tempo épica e deprimente, viu que o
pai não conseguia sequer acertar as teclas para montar sua última
crônica. "Não posso deixar de escrever", dizia ele.
Nelsinho sugeriu que o pai lhe dissesse as frases e então ele mesmo as
escreveria na máquina. Assim foi. Com um esforço explicado apenas pela
empolgação com o título do Fluminense, ele ditou ao filho algumas
palavras, algumas ideias. O texto foi publicado no dia 2 de dezembro em
"O Globo". Sua última frase é uma louvação ao Tricolor:
- Gostaria de falar dos campeões. O Fluminense tem um elenco fabuloso
do goleiro ao ponta-esquerda, e só os lorpas e pascácios não veem que o
futebol brasileiro está encarnado nos craques tricolores.
No próximo dia 23 de agosto, se estivesse vivo, Nelson Rodrigues
completaria 100 anos de vida. É a mesma idade que o Fla-Flu alcança
neste sábado.
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